Aula 4 - Fornalhas e composição de combustíveis
Fornalhas
A fornalha é a instalação onde ocorre a reação de combustão em um gerador de vapor [1]; é onde ar e combustível são alimentados e onde os gases são formados:
![Fonte: Adaptado de [1]](/media/gerador-adaptado_huf464594ad57182194d6ee7bf73fe84ab_96351_950e657a35f3b31e55fd2c1146283f67.webp)
O projeto da fornalha deve garantir as condições de queima adequadas para o combustível que está sendo usado. Os combustíveis mais usados atualmente em geradores de vapor são:
- Carvão mineral
- Lenha
- Óleo combustível
- Gás Natural
- Biomassa
Que fatores você acha que estão envolvidos na escolha de um destes combustíveis?
Dependendo da fase do combustível e de suas características, diferentes tipos de fornalha existem [1]:
- Fornalhas de queima em suspensão
- Fornalhas de queima em grelha
- Fornalhas de queima em leitos fluidizados.
É uma via de mão dupla: podemos projetar uma fornalha para um combustível escolhido, mas também podemos trocar o combustível se a fornalha já construída for compatível.
Uma das principais características de uma fornalha é seu volume. Pense em situações limite: o que você acha que acontece com o processo de combustão quando o volume da fornalha é muito pequeno? E quando é muito grande?
Uma maneira de quantificar essa determinação de uma faixa para o volume de uma fornalha é a carga térmica volumétrica, definida como a razão entre o calor liberado na combustão (definido na aula passada) e o volume da fornalha. A figura seguinte apresenta valores típicos de carga térmica volumétrica, dependendo do tipo de fornalha, do tipo de caldeira (que vamos estudar mais para a frente), e do tipo de combustível:
![Fonte: [1]](/media/carga-termica_hu7fd0a23708e9f8be93bdea8a03b05dc3_111659_60333587e68362cc4cd8e5cd71b8a23e.webp)
Composição de combustíveis
Na avaliação do processo de queima, a principal característica que importa dos combustíveis é a sua composição gravimétrica, isto é, as frações mássicas que são ocupadas por cada componente.
Os combustíveis industriais são uma mistura de [2]:
- Carbono ($\mathrm{C}$)
- Hidrogênio ($\mathrm{H2}$)
- Enxofre ($\mathrm{S}$)
- Oxigênio ($\mathrm{O}_2$)
- Nitrogênio ($\mathrm{N}_2$)
- Umidade ($\mathrm{H_2O}$)
- Cinzas
É preciso ser bastante claro na indicação da composição do combustível. Por exemplo, vamos dizer uma amostra de carvão é analisada e percebe-se que ele tem um teor de umidade de 20%. O carvão então é seco e analisado novamente, e descobre-se que, na base seca, ele tem 60% de carbono. Se estamos analisando uma reação do carvão já seco, então este é o teor de carbono; porém, se analisarmos uma reação do carvão úmido, então o seu teor de carbono em relação à massa total é 60% de 80%, ou 48%.
Nós vamos denotar \(x_i\)
a fração mássica do componente \(i\)
no combustível a ser analisado.
Visão geral da combustão
Uma reação de combustão é uma reação de algumas substâncias ou elementos com oxigênio, com subsequente liberação de energia.
Cada um dos componentes tem a sua reação química balanceada com o oxigênio, com a sua respectiva liberação de energia, como por exemplo [1]:
$$ \mathrm{C} + \mathrm{O}_2 \to \mathrm{CO}_2 + 33900 \ \mathrm{kJ/kg} $$
$$ \mathrm{S} + \mathrm{O}_2 \to \mathrm{S}\mathrm{O}_2 + 9200 \ \mathrm{kJ/kg} $$ Chamo a atenção para a reação do enxofre. Como vamos falar, o enxofre é um componente indesejado mas inevitável dos combustíveis, que até ajuda a liberar energia, mas muito pouca.
No caso do gás natural, o que é mais comum é expressar a composição em base volumétrica normal, isto é, a cada 1 m$^3$ de gás natural a 0 ºC e 1 atm, qual o volume parcial de cada hidrocarboneto que compõe o gás. Por exemplo, no caso do etano:
$$
2\mathrm{C}_2\mathrm{H}_6 + 7\mathrm{O}_2 \to 4\mathrm{CO}_2 + 6 \mathrm{H}_2\mathrm{O} + 51870 ,\mathrm{kJ/kg}
$$
Os gases de interesse em combustão podem ser tratados como gases ideais [3]. O volume ocupado por 1 kmol de todos os gases ideais uma uma pressão e temperatura especificados é o mesmo, independente da composição do gás. Portanto, se em 100 m$^3$ de gás natural há, digamos, 10 m$^3$ de etano, isso é completamente equivalente a dizer que, em 100 kmol de gás natural, há 10 kmol de etano. Nós usamos a notação \(y_i\)
para denotar a fração molar (ou volumétrica) de misturas de gases.
Na prática, os combustíveis industriais são misturas de todos esses componentes. O que chamamos de gás natural, por exemplo, é uma mistura do etano com metano e outros gases mais pesados. A lenha contém carbono, enxofre e outros componentes. Esses valores de energia por cada componente se somam e continuem para o poder calorífico dos combustíveis, e como vimos em aulas anteriores, esse poder calorífico é transferido para o vapor d’água na caldeira.
Reparar que é necessário oxigênio para ocasionar a reação. Poderíamos até fornecer oxigênio puro, o que seria mais eficiente, mas muito caro. Na prática, fornecemos ar, que vamos considerar como uma mistura de ar seco e umidade, sendo o ar seco uma mistura de oxigênio e nitrogênio. Consideramos também que cada 1 kg de ar seco carrega \(\omega\)
kg de umidade (vapor d’água dissolvido no ar).
Em base molar (ou volumétrica, já que consideramos o ar um gás ideal que é uma mistura de gases ideais \(\mathrm{O}_2\)
e \(\mathrm{N}_2\)
), o ar contém 21% de oxigênio e 79% de nitrogênio. Cada mol de \(\mathrm{O}_2\)
é acompanhado por 3,76 kmol (21% = 1 / (1 + 3,76)).
Poder calorífico inferior
A maneira correta de calcular o poder calorífico inferior de combustíveis é escrever a reação e aplicar a Primeira Lei da Termodinâmica a essa reação.
Considere uma reação de um determinado combustível, com a composição gravimétrica especificada. Na fornalha, não há realização de trabalho; vamos denotar \(\dot{Q}_{\mathrm{comb}}\)
a taxa de liberação de calor na combustão. Uma análise de Primeira Lei da Termodinâmica em regime permanente, sem variações de energia cinética e potencial, fornece:
$$ \dot{m} _{\mathrm{cb}}h _{\mathrm{cb}} + \dot{m} _{\mathrm{ar}}h _{\mathrm{ar}} = \dot{Q} _{\mathrm{comb}} + \dot{m} _{\mathrm{g}}h _{\mathrm{g}} $$ Os valores de entalpia específica são tabelados, porém são tabelados em relação a uma referência para a substância. Como aqui temos diferentes substâncias, precisamos estabelecer uma relação entre as referências das diferentes substâncias.
Na análise da combustão, geralmente estabelecemos que o estado de referência padrão de todas as substâncias envolvidas é 25 ºC e 1 atm. A entalpia de uma substância reagente no estado padrão é a sua entalpia de formação, e, por convenção, a entalpia de formação dos seguintes compostos é nula:
- Carbono monoatômico
- Gás nitrogênio
- Gás oxigênio
- Gás hidrogênio
O valor absoluto do calor liberado em uma reação de combustão, quando todos os reagentes e produtos são mantidos na mesma temperatura (usualmente a própria temperatura do estado padrão), é o seu poder calorífico. O poder calorífico é inferior quando o vapor d’água formado está na fase gasosa (o que é geralmente o caso).
O PCI de um combustível, portanto, deve ser calculado escrevendo a reação de combustão, determinando os balanços estequiométricos, e então aplicando a Primeira Lei.
Porém, com boa aproximação [1], o PCI pode ser calculado diretamente com base na composição.
Para combustíveis sólidos e líquidos
$$ \mathrm{PCI} = 33900x _{\mathrm{C}} + 141800 \left(x _{\mathrm{H_2}} - \frac{x _{\mathrm{O_2}}}{8}\right) + 9200 x _{\mathrm{S}} - 2400 \left(9 x _{\mathrm{H_2}} + x _{\mathrm{H_2O}}\right) $$
onde o resultado está em kJ/kg e as frações mássicas são números decimais, não em porcentagens.
Para combustíveis gasosos
Como o gás natural é uma mistura de gases ideais, podemos ponderar o poder calorífico de cada componente na base mássica:
$$ \mathrm{PCI} = \sum_i x_i \mathrm{PCI}_i $$
onde, cuidado! As frações volumétricas precisam ser convertidas em frações mássicas.
Exemplos
Exercício 3.1 de [1]: Considere uma fornalha projetada para queimar 1 kg/s de carvão com composição na base seca:
- 47% de carbono
- 3% de hidrogênio
- 4% de enxofre
- 5% de oxigênio
- 1% de nitrogênio
- 40% de cinzas
# composição base seca
xC = 0.47
xH2 = 0.03
xS = 0.04
xO2 = 0.05
xN2 = 0.01
mdot_cb = 1
def PCI_sl(xC,xH2,xO2,xS,xH2O):
return 33900*xC+ 141800 *(xH2-xO2/8) + 9200*xS - 2400* (9*xH2+xH2O)
PCIb = PCI_sl(xC,xH2,xO2,xS,0)
xH2O = 0.2
PCIu = PCI_sl((1-xH2O)*xC,(1-xH2O)*xH2,(1-xH2O)*xO2,(1-xH2O)*xS,xH2O)
Qdot_db = mdot_cb*PCIb
Qdot_du = mdot_cb*PCIu
print("Calor disponível (base seca) = %.2f MW" %(1e-3*Qdot_db))
## Calor disponível (base seca) = 19.02 MW
print("Calor disponível (base úmida) = %.2f MW" %(1e-3*Qdot_du))
## Calor disponível (base úmida) = 14.74 MW
Calcule o calor disponível na fornalha, considerando que o carvão é fornecido seco ou úmido (20% de umidade), desprezando as contribuições de calor sensível.
Exercício adaptado 15-103 de [4]: Calcule o PCI de uma mistura gasosa de 40% em volume de butano ($\mathrm{C} _4\mathrm{H} _{10}$) e 60% de propano ($\mathrm{C} _3\mathrm{H} _8$)
ybutano = 0.4
Mbutano = 58.12
PCIbutano = 45720
ypropano = 1-ybutano
Mpropano = 44.09
PCIpropano = 46360
M = ybutano*Mbutano + ypropano*Mpropano
xbutano = ybutano*Mbutano/M
xpropano = 1-xbutano
PCI = xbutano*PCIbutano + xpropano*PCIpropano
print("PCI da mistura = %.2f MJ/kg" %(1e-3*PCI))
## PCI da mistura = 46.06 MJ/kg
Referências
[1]: Bazzo, E. Geração de vapor (2 ed.). Florianópolis: Editora UFSC, 1995.
[2]: Lora, E. E. S., & Nascimento, M. A. R. do. Geração Termelétrica: Planejamento, Projeto e Operação. Rio de Janeiro: Interciência, 2004.
[3]: Heywood, J. B. Internal Combustion Engine Fundamentals. New York: McGraw-Hill, 1988.
[4] Çengel, Y. A., & Boles, M. A. Termodinâmica (7 ed.). Porto Alegre: AMGH, 2013.